As Máscaras de Veneza


Eram 12h35. Faltava-me cerca de hora e meia para apanhar o autocarro para o aeroporto Marco Polo. Já tinha gasto as 24h do bilhete do vaporetto e não tive tempo sequer para ir ver as cores de Burano. Tinha acabado de ver o desfile das fragatas, o segundo evento da inauguração do Carnaval, e estava demasiado cansada para me perder novamente pelo labirinto de vias, vicolos, calles, sotoportegos e fondamentas que vão dar à praça de São Marcos. Sentei-me nas escadas da estação de comboios de Santa Lucia, abri o saco do Conad e saquei da baguete de meio metro e do queijo em fatias que tinha comprado. Fiz ali a minha hora de almoço. Tinha a pele seca de tanto frio e apareceram-me frieiras, só pelos 4 dias que estive cá em cima no Norte. O céu estava limpo e o sol aquecia-me, pelo menos os pés e as mãos. Estava já a morder a baguete quando me senti observada e, aos poucos, comecei a ter companhia. Vinham devagar, devagarinho, como quem quer surpreender mas sempre com medo de denunciar a presença. Quando comecei já a sentir-me ameaçada, separei migalhas da baguete e enviei-as para longe de mim. Era vê-los correr atrás da vida! A observar a cena estava também a senhora gaivota, autoritária, orgulhosa, de pescoço erguido. Depois de espantar todos os súbditos, fez questão ela própria de se deliciar com tamanho banquete. Depois olho para a cena e penso que com os homens funciona exatamente da mesma forma. Diriam que é uma questão de hierarquia.


Vista da frente da Estação de Santa Lucia




Porter Service
Dificuldades para pessoas com mobilidade reduzida
Entretanto olho para o lado e percebo que muitas mais pessoas estão também sentadas ao sol nas escadas da estação. Não é uma paisagem monótona, bem pelo contrário. A todos os minutos há pessoas a subir e a descer as escadas com trolleys à mão e carrinhos de crianças a serem carregados pelos pais. Não falo de pessoas em cadeiras de rodas porque, de facto, não as vi, mas de certo que teriam a mesma dificuldade. Veneza pode ser uma cidade-tendência, mas não é muito apta nem propensa a visitantes de mobilidade reduzida. Enfim, depois há um grupo de pessoas com coletes auto-refletores vestidos a empurrar carrinhos vazios com placas afixadas que dizem "Porter service", um serviço de carregamento de malas até ao hotel. De tempos a tempos, sempre que se apercebem da chegada de mais um comboio, sobem as escadas à conquista da clientela - "taxi bag, taxi bag"! No dia anterior, quando andei a deambular pela cidade, vi como funciona o serviço - eles, a empurrarem três ou quatro trolleys de 30 kg por ruas onde qualquer um se perdia, e elas, ao lado, a fazerem diretos para o instagram à medida que mostram a chegada a Veneza. Daqui das escadas vê-se também a Ponte degli Scalzi (ponte dos descalços), que oferece uma vista espetacular sobre o início do Grande Canal. Hoje, por ser também oficialmente o segundo dia do Carnaval, é bastante procurada por mascarados para a bela da fotografia.


Ponte degli Scalzi
Como uma clementina enquanto reparo na fila de pessoas à espera do vaporetto na estação ferrovia. E sempre que olho para as estações dos vaporettos lembro-me sempre, com uma gargalhada para comigo mesma, do meu primeiro dia aqui em Veneza. E que dia! Na noite anterior à chegada, estava eu em Verona, recebo uma sms da minha operadora a informar-me gentilmente de que o meu serviço de roaming estava ativo há mais de 4 meses e que por essa razão, a partir desse dia em diante, iriam aplicar-me taxas extras sobre chamadas, sms ou internet para serviços fora de Portugal. Fiquei em pânico! Não sabia sequer como iria encontrar o hostel sem o GPS! Para me prevenir, revi nessa noite no google maps todo o caminho que teria de fazer desde a estação Santa Lucia ao hostel. Fiz printscreens de vários momentos do caminho e apontei o nome de todas as ruas pelas quais teria de passar. E acredite-se ou não, correu tudo na perfeição, até não haver mais terra por onde andar. Pois, porque o meu hostel ficava na ilha da Giudeca, pelo que teria obrigatoriamente de apanhar o vaporetto (autocarro aquático) para lá chegar. Como não sabia como funcionavam, fui até uma máquina de venda automática para comprar o bilhete. Quando vi o preço, pareceu-me que a terra me tinha fugido e que já andava a nadar no canal! Tinha comprado a passagem em Novembro por € 10,99 para fazer mais de 530 km de avião e agora ia pagar € 7,99 para andar 3 minutos de barco? Claro que não! Depois, nessas estações, existe a entrada, onde se deve passar o bilhete, e a saída, por onde descem as pessoas quando saem do vaporetto. Vejo imensas pessoas a entrarem pela parte onde diz "vietato entrare" (proibida a entrada) e penso - "Bem, se calhar, como o preço dos bilhetes é caro, muita gente não compra e vai com fé de não levar multa...". Optei por fazer o mesmo. Tive sorte. Disse-me depois o empregado do hostel que, se tivesse sido apanhada, a multa poderia ter ido até aos € 100. Por isso, pelo sim pelo não, é sempre melhor comprar.

Vaporetto na estação

Foi o que fiz no dia seguinte. Comprei um bilhete de € 20 que me permitiu usar o vaporetto durante 24h. E depois pensei – “Bem, se quisesse andar de gôndola seria 3 ou 4 vezes mais caro, por isso até que bem compensou o uso”. Os bilhetes podem ser comprados em tabacarias (conhecidas como tabacchi, em Itália), em hosteis ou, quando existem, nas máquinas automáticas das estações. Acordei ainda era de noite porque queria ver com os meus próprios olhos o amanhecer na Praça de S. Marcos. Foi a primeira vez que cheguei à praça, considerada o centro de Veneza. Arrepiou-me o silêncio com que o Sol nascia, como se não quisesse perturbar os que dormiam. Como se só os que já tinham acordado pudessem ter o privilégio de ver com quantas cores o céu se pinta antes de receber a luz. Uma dezena de fotógrafos profissionais posicionava-se na praça na tentativa de captar o melhor amanhecer. Depois pensei que eu própria poderia estar a testemunhar a produção da próxima capa da Travel ou da National Geographic. Há coisas fantásticas, não há?


Praça de São Marcos

Amanhecer na Praça de São Marcos

Praça de São Marcos

Abandonei para sempre a quietude da praça (sabia que mais tarde quando voltasse estaria em estado de sítio) e aventurei-me à descoberta da mais famosa das quatro pontes que atravessam o Grande Canal – A Ponte Rialto. Levei cerca de 15 minutos e foi só seguir a indicação que consta nas placas colocadas praticamente em todas as ruas. Em quase todos os lugares existem indicações para os 4 pontos-chave da cidade: Rio Alto, São Marcos, Ferrovia (Estação de Santa Lucia) e Piazzale de Roma. Também a Ponte Rio Alto foi invadida por fotógrafos à espera que o tímido sol se mostrasse. Mas ali não foi fácil, o espaço não goza da mesma vista desafogada e os edifícios, de um e do outro lado da ponte, acabam por demorar a magia da luz.



Indicações de caminho para os principais pontos da cidade

De segunda a sábado há também mercado em Rialto. Aliás, pelo que pude comprovar, mercados existem em quase todos os centros históricos das cidades da zona do Veneto. Depois de percorrer Veneza a pé, descobri apenas 2 supermercados. Os habitantes estão acostumados a ir ao mercado e os turistas alimentam-se nos inúmeros hotéis, bares ou restaurantes. Continuei a pé até à Piazzale de Roma e aí entrei num Vaporetto para percorrer todo o Grande Canal sob as águas calmas. Ah, e é mito, as águas de Veneza não cheiram mal! Pelo menos no Inverno, não. É uma sensação indescritível. É aqui que reconheço que os € 20 não podiam ser mais bem gastos. Lembrou-me um pouco Amesterdão, é verdade. Mas em mais lado nenhum senão ali as ambulâncias são barcos, a recolha de lixo é feita em barcos, os táxis são barcos, a polícia desloca-se em barcos e as próprias deslocações particulares ou profissionais são por meio da água. A própria organização da cidade é todo um processo completamente diferente do que estamos habituados.

Ponte Rialto vista a partir do vaporetto

O Grande Canal - vista do vaporretto

Táxi de Veneza

Ambulância de Veneza
Para além da Ponte degli Scalzi e da Ponte Rialto, existem mais 2 pontes que fazem a travessia do Grande Canal – a Ponte Accademia (para mim, a mais bonita de todas, a que antecede a Praça de São Marcos) e também a Ponte da Constituição (a ponte mais recente que, por ser de um estilo arquitetónico completamente diferente das restantes, é a menos popular por entre os habitantes de Veneza).


Ponte Accademia

Ponte Accademia - vista a partir do Vaporetto

Regresso às escadas da estação, aos pombos, às filas e ao sol. Por toda a parte para onde se olha vê-se o clima de festa. Os mascarados formam aglomerados e dezenas de turistas pedem desesperadamente por uma foto. O Carnaval aqui dura praticamente o mês inteiro de Fevereiro e, apesar da folia, não se cometem excessos por aqui. Ao contrário do típico costume português, que nos “manda” aproveitar porque a vida são dois dias e o carnaval três. Aqui a festa dura o mês inteiro, por isso não há razões para exageros. Assim foi também a noite de sábado, dia 8, de inauguração do Carnaval. Simples, sem dada a exageros, mas tocante, capaz de arrepiar mesmo os menos sensíveis. Os espetáculos de abertura foram todos grátis, daí que os milhares de pessoas, que não quiseram deixar de assistir, entupissem todos os acessos à Fondamenta de Canaregio, canal onde tiveram lugar os desfiles da noite de sábado e da manhã de domingo. No final do espetáculo de domingo, a Comuna de Veneza ofereceu (filhoses) a todos os espetadores. Uma tradição de Carnaval, diziam.

Fondamenta de Canaregio - à espera para ver o desfile

Evento de Abertura do Carnaval

Segundo Evento do Carnaval 2020

Olhei para o relógio para confirmar a hora. Faltavam quinze minutos para apanhar o autocarro. Levantei-me, atordoada, por não ter dado conta do tempo passar. “Filhoses no Carnaval!”, pensei para comigo. Ri-me perante tamanha estupidez. Em Portugal as filhoses são uma receita tipicamente natalícia que, infelizmente, já quase ninguém faz. Quem as quer comer normalmente compra-as já feitas. Filhoses... Depois estaquei, imobilizada. Filhoses no Carnaval! O brilho do sol fez com que a temperatura aumentasse por momentos e uma sensação de calor inundou todo o meu corpo. Filhoses no Carnaval. Sim, lembrava-me agora. Houve tempos em que também eu comi filhoses no Carnaval. Um tempo em que ainda nem sequer sabia onde ficava Veneza. Nem eu nem ela. E mesmo nunca lá tendo ido, sabia perfeitamente que se comiam filhoses pelo Carnaval. E fazia-as com tanto amor e carinho que ainda hoje não descobri ninguém que as fizesse de igual modo. Agora, sim, compreendo tudo. 


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