Retornados de uma guerra sem rosto

Estávamos a jantar na casa do Gennaro na segunda-feira, dia 9 de Março, quando na televisão interromperam o programa interativo, que estava em emissão, para divulgarem o comunicado em direto de Giuseppe Conte, primeiro-ministro de Itália. Pensámos, à partida, que fosse apenas só mais uma atualização sobre o número de infetados e mortes em Itália devido ao Coronavírus, mas à luz da sucessão de eventos que vinham acontecendo ao longo da semana, não poderia apenas ser um comunicado informativo.

O primeiro caso de contágio na Região da Lombardia, supostamente um homem regressado da China com febre e que se pensa ter sido a principal fonte de contágio, já levava mais de um mês. Ou seja, já fazia mais de um mês que o Norte de Itália estava a braços com um vírus altamente contagioso que começou por infetar médicos e profissionais de saúde ainda antes de saberem do que se tratava. E durante esse mês muitas medidas foram tomadas para que o vírus não se propagasse, para que não se limitasse geograficamente à zona de onde fora difundido, embora o número de contágios não parasse de se multiplicar todos os dias.

O estado de emergência para o norte do país já havia sido declarado pelo governo italiano a 31 de Janeiro (quando ainda só existiam 2 casos confirmados), e tinham sido também suspensos todos os voos de e para a China. O que falhou então na contenção italiana? As escolas do norte (estendeu-se depois a todo o país) iam encerrando de par em par, medida que fez com que todas as crianças ficassem em casa... dos avós. Depois de não sei quantas campanhas, transmitidas pela TV, pelos jornais e por outros tantos media para que as pessoas não saíssem de casa, não se reunissem em agrupamentos e não procurassem espaços sociais como restaurantes, cafés ou ginásios. Depois de tantos avisos para que realmente se fechassem cafés, restaurantes e ginásios e se alertasse para que estivessem apenas supermercados e farmácias em funcionamento para suprir as necessidades básicas da população. Eis quando são noticiadas numerosas festas secretas organizadas pelos irresponsáveis italianos do norte, que mantinham centenas de pessoas em ambientes reduzidos e favoráveis à propagação do vírus. Eis que centenas de milhares de irresponsáveis italianos, provenientes das zonas vermelhas de quarentena, entopem comboios na Lombardia na tentativa de se deslocarem para o sul do país (foram cerca de cem mil pessoas), desconhecendo se seriam portadores do vírus. Foi entre os dias 7 e 8 de Março que nos chegaram imagens da estação de comboio de Milão apinhadas de gente que, conforme foi comprovado, transmitiram depois o vírus aos italianos do sul.




Depois de todas essas notícias do norte do país e de os próprios governantes do sul pedirem satisfações ao governo central, não seria, portanto, de estranhar que suspeitássemos que o comunicado de Conte não seria então meramente informativo do estado das coisas no país. E estávamos certos. Mais de um mês depois de o vírus chegar e alastrar por todo o território italiano, Conte comunicou que a Itália seria una e decretou estado de emergência nacional a todo o país, sentenciando que a zona vermelha abrangeria agora toda a Itália, proibindo a circulação livre, salvo com motivo devidamente justificado, e ordenando quarentena obrigatória a toda a população.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou o estado de Pandemia a 11 de Março, quarta-feira. Desde o dia anterior, 10 de Março, após a comunicação de Conte, que a nossa intenção era a de deixar o país o mais rápido possível. Por outro lado, de Portugal vinham notícias preocupantes, as de que o governo tinha cancelado todos os voos de e para Itália nesse mesmo dia 10. Estávamos quase que encurralados. Lembro-me de não ter dormido mais de duas horas por noite nessa semana inteira, ainda que reunisse esforços e procurasse descansar todos os familiares e amigos quanto à nossa situação. Ligávamos vezes sem conta para a Embaixada de Portugal em Itália, que não dizia mais nada senão para consultarmos o site que supostamente estaria em permanente atualização. No site havia também um endereço de correio eletrónico para o qual deveríamos enviar um email caso não conseguíssemos voo. Cheguei a enviar o email mas não serviu de nada. Não houve qualquer resposta.





Entregámo-nos à pesquisa de voos com escala em diferentes cidades europeias. Mas o problema não era, nem nunca havia sido, o local da escala. O problema era que as próprias companhias aéreas se recusavam, elas próprias, a voar de ou para Itália. E a tensão aumentava. Tinha dores de cabeça insuportáveis e sentia-me desidratada (por mais água que bebesse). Só pensava que podia adoecer ali até com outra doença qualquer, naquele inferno, e não haver um hospital que me conseguisse receber. As chamadas e mensagens com familiares e amigos traziam-me sempre algum conforto, mas não eram mais do que uma falsa proximidade. Mas nunca dei parte fraca. Nunca deixei que ninguém percebesse a angústia e o desespero, nem quando foi cancelado o primeiro voo que tinha marcado para quinta-feira, 12 de Março, um voo Easyjet que fazia escala em Lyon; Nem mesmo quando foi cancelado o segundo voo que tinha marcado pela KLM, para dia 13 de Março e que fazia escala em Amesterdão.








Já sem qualquer tipo de esperança de sair de Itália, comprei voo pela Ryanair com destino a Eindhoven (Holanda). Não comprei logo de Eindhoven para Lisboa com medo de também este voo ser cancelado e depois não conseguir reembolso do outro voo. Na quinta-feira, dia 12 de Março, estava numa pilha de nervos e não consegui comer praticamente nada. Andava com a garrafa de água para trás e para a frente, tomava comprimidos de valeriana (e eu que só costumo tomar medicamentos quando estou para morrer!) para me conseguir acalmar. Aquela espera angustiante que mata foi interrompida por uma indignação de outro mundo quando vejo imagens de centenas de portugueses a aproveitarem o sol na praia! De uma irresponsabilidade que até custa crer! Consulto mais uma vez o site da Embaixada, quando surge uma informação importante - a Ryanair estava a fazer um esforço para retirar os portugueses de Itália até sexta-feira, 13 de Março. Respirei fundo, sexta-feira 13 iria ser o meu dia de sorte! Arrisquei e comprei voo para Lisboa a partir de Eindhoven, mas com escala em Marselha (já não havia voos diretos). Que fosse!




Na sexta-feira, 13, acordei confiante. Não havia informação de cancelamento. Antes de sairmos de casa equipámo-nos com máscaras e luvas e preenchemos a declaração de circulação para nos podermos deslocar até ao aeroporto. Nessa declaração era obrigatório referir o local de onde vínhamos, o local para onde íamos e qual o motivo. Entregámo-la depois, mais tarde, a um controlador cabisbaixo de um aeroporto quase deserto - o de Nápoles. No painel das partidas e chegadas quase todos os voos tinham sido cancelados. Este era um dos últimos poucos voos a deixar Itália isolada e entregue à sua própria sorte. Antes de entrarmos no avião, uma funcionária da Ryanair deu a cada passageiro uma folha para se preencher com os próprios dados, para que, caso houvesse alguém naquele voo a quem fosse confirmado o vírus, os restantes passageiros serem contactados para que também eles pudessem confirmar ou não a contaminação. O voo pareceu-me demasiado longo e o avião invulgarmente vazio e sem vida. Uma pessoa por cada três assentos. E eu não parava de pensar que tinha ido para Itália para ajudar e que a estava a abandonar precisamente quando ela mais necessitava de ajuda. Foi a refletir sobre a ironia da vida que acabei por adormecer, exausta, a olhar para um pôr-do-sol que me transmitiu o sossego que precisava já há uma semana.



Segundo o que tinha pesquisado antes de voar, a Holanda tinha já confirmados mais de mil casos de pessoas infetadas, daí a minha surpresa quando no aeroporto de Eindhoven não vejo praticamente ninguém de máscara e ainda olham para quem a usa como se se passasse algo de errado com essa pessoa. O controlo a quem acaba de chegar da segunda zona mais afetada do mundo é zero. Não há ninguém a tirar febre ou a fazer testes. Lembro-me que antes de voar receava que as autoridades holandesas nos obrigassem a uma quarentena de 14 dias no país caso fossemos portadores do vírus. Mas nada! Pensei naquele momento que não havia povo mais descontraído do que o holandês, mas também percebi mais tarde que estava errada. Depois de passar a noite no hotel, praticamente dentro do aeroporto, apanhei, no dia 14 de Março, outro voo da Ryanair, desta vez em direção a Marselha. Percebi que também aí as pessoas não usavam máscara, nem mesmo os funcionários do aeroporto. A descontração era generalizada e fazia-se sentir um pouco por toda a Europa. Ninguém fazia testes, ninguém controlava nada. Conseguíamos manter minimamente as distâncias dentro dos aeroportos porque a verdade é que também não tinham muita gente. Mas dentro dos aviões a conversa era outra. Voei de Marselha para Lisboa pela TAP e o avião ia lotado. Ao mínimo espirro de alguém já não sabíamos onde nos enfiar!



Durante a viagem (de dois dias) ainda enviei um email para atendimento@sns24.gov.pt a informar  que estava a chegar a Portugal, vinda de Itália, e a perguntar o que deveria fazer assim que aterrasse. Ouvi muita gente dizer que, por email, ao final de meia hora já teria resposta. Não. Foi ao final de dois dias que me responderam e simplesmente para me aconselharem a ligar para o número da SNS 24. Ao final de dois dias já estava em casa dos meus pais, fechada na sala. Tinham-me ido buscar ao aeroporto com 2 carros e deixaram-me o meu carro livre para poder conduzir sozinha, sem ninguém a quem pudesse infetar. Hoje faço 5 dias de quarentena obrigatória. Não tenho sintomas e as palpitações que tinha cessaram. É realmente bom estar em casa, ainda que fechada.

O governo português decretou há dois dias, 18 de Março, emergência nacional. Não sabemos até quando esta situação vai durar mas esperemos que termine mais rápido do que começou. Sabemos que vai depender muito também de cada um de nós e do nosso papel como cidadãos responsáveis. De tempos a tempos, as notícias que me chegam de Itália continuam a tirar-me a tranquilidade. É como que uma segunda casa, que vemos arder, mas que não sabemos como fazer para extinguir as labaredas. E sustenho o ar a pensar em todas as pessoas que conheci lá, que permanecem há já tanto tempo dentro de casa, que se perguntam o porquê de estar a acontecer com elas. Mas que não atiram a toalha ao chão nem se deixam desanimar, que vão para as varandas cantar Pino Daniele, que se sentam à mesa com a mesma vontade e que comem com o mesmo prazer com que antes o faziam.

É verdade, por muito mau que isto seja, e por nos estar a atingir a todos em igual medida, creio existir agora uma solidariedade crescente por entre o mundo. Como se fosse necessário descermos aos infernos para nos apercebermos de coisas simples, que também são boas. A quarentena obrigatória em muitos países do mundo, que resultou no encerramento de muitas fábricas e indústrias, levou à redução drástica dos níveis de poluição, o que permitirá no futuro salvar milhares de vidas. Nos canais de Veneza, sem movimentos de motores para movimentações de turistas, começaram a aparecer cisnes e golfinhos em águas cristalinas. É sempre bom lembrar que é a partir das crises que surgem as oportunidades. Foram as guerras que contribuíram para a evolução do mundo. E não é estranho dizer que, da mesma forma que em 1975 regressaram muitos portugueses fugidos das colónias, também agora nós nos sentimos retornados, de uma guerra cujo opressor não tem rosto.

Cada vez que olho para o mapa do mundo, com o número de casos em cada país, lembro-me sempre da Coreia do Norte. A Coreia do Norte, como sabemos, é vizinha da China e da Coreia do Sul, os países mundialmente mais atingidos pelo coronavírus. Kim Jong Un, o ditador da Coreia do Norte, insiste em alegar que o país se mantém intacto, sem nenhum caso de contaminação, o que parece quase impossível, dado os níveis de contaminação até do outro lado do mundo. Ninguém sabe o que acontece dentro das suas fronteiras e muito menos se os próprios habitantes têm conhecimento da pandemia. Os líderes da Coreia do Norte controlam até a informação que é transmitida aos seus habitantes, pelo que os coreanos podem muito bem estar a morrer aos milhares (sem que ninguém o consiga saber) e sem que lhes seja comunicado o verdadeiro motivo.

À parte a Coreia do Norte, o resto do mundo é uno e apregoa uníssono em muitas línguas o
#stateacasa
#fiqueemcasa
#stayathome

Comentários

  1. O sufoco que tu passaste rapariga, ainda bem que já estás em casa. Agora descansa e fica em casa. Força Mónica :) Vamos ficar bem

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