Pandemia Organizada

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Na quarta-feira à tarde, enquanto preparava a aula de inglês para o dia seguinte, recebi uma mensagem do responsável da Biblioteca da Comuna a informar que, por decisão do Conselho de Ministros Italiano reunido nessa mesma tarde, todas as escolas e serviços educacionais seriam suspensos entre 5 e 15 de Março, e que as próprias aulas de inglês teriam de ser lecionadas em contexto e-learning. Olhei duas e três vezes para a mensagem. Era a primeira vez que o surto do Coronavírus influenciava o normal decurso das nossas atividades. Até então  havia estado à distância, como se fosse apenas um caso isolado num outro planeta, numa outra galáxia, afastada por milhares de anos-luz. Se o contágio tivesse ocorrido a partir do Sul do país, já teriam suspendido tudo o que era transporte e fechado tudo o que fosse aeroporto ou estação e ninguém poderia nunca, nem sequer tentar, aceder ao Norte. Porque o Sul, esse animal preguiçoso e pestilento, não poderia afetar, de forma alguma, a irrepreensível máquina nortenha de fazer dinheiro. Porque o Sul tinha tempo suficiente para esperar por uma reabilitação enquanto que o Norte não poderia abandonar a sua responsabilidade de levar a economia do país a bom porto. Porque para o governo italiano, e isso é até visível para quem anda por cá há 3 pares de meses, existem os italianos do norte (pessoas alfabetizadas mas frias, que sabem estar e sobrevivem condignamente para trabalhar) e os italianos do sul (cidadãos de segunda, um terror de gente barulhenta e preguiçosa, que vive sobretudo para comer). Mas quis a vontade de algum ser superior que o surto em Itália tivesse início em Codogno, comuna da Lombardia, a 60 Km de Milão. A Norte, portanto. E como é a Norte, não se pode nunca isolar, fechar as fronteiras ou obstruir a movimentação das gentes civilizadas do Norte para as quentes e férteis terras do Sul. Ainda para mais quando o próprio vírus acaba por não resistir quando em contacto com temperaturas elevadas. Mas a ignorante gente do sul é acolhedora e sabe bem receber toda a gente de braços abertos, até mesmo os distintos cidadãos do Norte.
Muita gente que me conhece e que sabe onde estou me tem perguntado como está a situação por aqui. Por aqui, na região da Campânia, Sul de Itália, de entre uma população de mais de 5 milhões de habitantes, até há algumas horas eram cerca de 50 as pessoas infetadas. Se analisarmos em proporção, Portugal, com uma população de 10 milhões de habitantes, tem quase tantos casos de contágio como a região da Campânia. Não se vive em histerismo, retrato que a comunicação social gosta de transparecer, nem tão pouco faltam alimentos no supermercado (ainda agora de lá vim e não houve nada que tivesse deixado de trazer por não estar disponível). Não vejo absolutamente ninguém de máscara e as próprias pessoas não se coíbem de frequentar cafés, bares, lojas ou igrejas. A maior parte da população tem um comportamento normal e não vê razões, pelo menos por enquanto, para cair em exageros. O encerramento das escolas e o cancelamento das atividades educacionais revelou-se unicamente como uma medida preventiva para que o vírus não se continue a alastrar, uma vez que as unidades de saúde, principalmente no Norte, começam a não ter capacidade de resposta para tantas pessoas infetadas.   
Nesta sexta-feira à tarde, na oficina com o Roberto, falávamos sobre a vida dos casaleses (moradores de Casal di Príncipe, comuna da região de Caserta) quando a Camorra ainda dominava o plano político e social da cidade. De como, na altura não havia desemprego e os habitantes viviam felizes porque tinham trabalho e não faltava dinheiro em casa. De como existiam pactos entre o síndaco (função correspondente a Presidente da Câmara) e as várias empresas ligadas à associação criminosa e de como os concursos públicos eram invariavelmente ganhos por essas mesmas empresas. De como bares, cafés, restaurantes ou outro tipo de negócios eram coagidos a escolher fornecedores ligados à Camorra. De como se metiam em prática as ameaças quando os empresários pensavam que tinham livre arbítrio para fazer as suas próprias escolhas. De como foi brutalmente assassinado, a 19 de Março de 1994, na sacristia da sua igreja, o pároco Giuseppe Diana, pelo seu empenho civil e religioso contra a Camorra. De como essa data me é tão querida e me leva a crer que não vim para este "Terceiro Mundo" (como oiço muitos habitantes lhe chamar) por simples acaso. De como a publicação do livro "Gomorra" em 2006 foi, a par do assassinato do pároco, os dois grandes acontecimentos que mostraram a toda a Itália (mas também ao resto do mundo) o que de facto se estava a passar nos arredores de Nápoles. E, finalmente, de como foram necessários esses dois acontecimentos para que o Governo fosse finalmente levado a tomar uma atitude. 
Falávamos exatamente sobre essa pandemia criminosa em que Casal di Príncipe esteve mergulhado quando o Roberto recebe a notícia do isolamento da primeira pessoa infetada na cidade. Depois penso (porque gosto de pensar sobre estas coisas) que se este Coronavírus tivesse tido "epicentro" aqui no Sul, na região de Caserta, se seria necessário passar tanto tempo para que o governo tomasse uma atitude quanto o tempo que foi necessário para intervir num Casal di Príncipe dominado pelo crime organizado. 

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