Sobre o voto, a mulher e a alfabetização

Se a minha avó fosse viva por estes dias, era certo tirar o seu melhor fato do roupeiro e colocá-lo ao ar, para que dele saísse o cheiro e a poeira de anos passados. Votar, para ela, era para lá de um direito. Era uma celebração. E à qual devia ir bem-vestida.

A minha avó era analfabeta. Não escrevia mais do que o seu nome completo com uma bonita caligrafia de primeira classe. Sempre que precisava de assinar o seu nome, sacava do bilhete de identidade e copiava religiosamente as letras que tinha aprendido com a Professora Elsa no único mês que frequentou a escola em mais de oito décadas de existência. Confesso que bilhetes de identidade é coisa que sempre me fascinou. Junto com outros documentos, e escondido num envelope dentro da gaveta de um armário que cobria toda a parede da sala, a minha avó guardava o bilhete de identidade da sua mãe, minha bisavó, que falecera dois anos antes de eu nascer. Na linha da assinatura não havia qualquer nome, mas a marca de um carimbo onde se lia: “Não sabe escrever”.

Durante muito tempo mulheres como a minha avó foram circunscritas ao seio familiar e afastadas da vida política e do mercado de trabalho por não saberem ler ou escrever. Ainda hoje, se tivermos em consideração pessoas entre os 50 e os 65 anos, Portugal não é só o país menos escolarizado da Europa, mas também o que apresenta maior desequilíbrio entre géneros. E votar, como se sabe, implica muito mais do que saber ler e escrever. Votar pressupõe uma reflexão. E o ato em si, agora mais do que nunca, deve ser baseado numa decisão informada.

Segundo as contas que ultimamente tenho feito, a minha avó ganhou o direito a votar em 1970, com a aprovação da lei eleitoral que vigora até hoje, tinha ela 38 anos. Viveu até aos 87, o que significa que durante grande parte da sua vida teve de conviver com decisões que não tomou e com escolhas que não fez. Não me parece assim tão descabido que olhasse para qualquer dia de eleições como um bom motivo para celebrar. Lembro-me de em pequena lhe perguntar em quem votava. Nunca me respondia. Dizia-me que essas coisas eram secretas, que não se contavam a ninguém. Anos mais tarde, apercebendo-me do que significava ser analfabeto, perguntei-lhe como conseguia ela distinguir os nomes dos partidos no boletim de voto. Disse-me que não precisava de ler, que colocava a cruz à frente do partido identificado pela “mão”.

Mulheres a votar nas eleições para a Assembleia Nacional

Nesse dia percebi que, apesar de votar, a minha avó não fazia mais do que reproduzir as intenções de voto do meu avô. Não sabia quais os programas dos partidos, não sabia os princípios e os valores que orientavam a esquerda e a direita e não sabia o porquê de votar naquele partido e não em qualquer outro. É verdade que votava, que tinha finalmente esse poder de decisão. Mas não deixava de ser uma escolha orientada por outra pessoa. Não digo que ela não concordasse com as políticas defendidas pelo partido, mas uma coisa é ter consciência em quem se vota e em quem se deposita confiança para nos representar, outra coisa é aceitar como nossa a escolha de outra pessoa que se insere num outro grupo (profissional, etário e de género) que não tem as mesmas lutas, os mesmos conflitos e as mesmas pretensões.

Mas mais do que alfabetização, é necessária literacia - a capacidade de usar a alfabetização para adquirir conhecimento e participar ativamente na sociedade. Porque de nada serve saber ler e escrever se não se conseguir compreender, interpretar e fazer uso da informação escrita para desenvolver os nossos próprios conhecimentos. É a literacia que distingue as nossas preferências. É a literacia que distingue uma escolha informada, responsável e consciente de uma decisão irrefletida, insensata e influenciada.

A minha avó costumava apelidar Álvaro Cunhal e os seus camaradas de “comodistas” e não posso dizer que não compreenda, em parte, o porquê. A luta pelos direitos dos trabalhadores - pela instituição de dias de descanso obrigatórios e remunerados, pelo direito à greve e à manifestação, pelo estabelecimento de um salário mínimo - foi sempre a luta de outros, não a da minha avó. Se lhe tivesse sido permitido desenvolver uma atividade profissional, talvez aí ela olhasse de forma diferente para as reivindicações de este ou de qualquer outro partido político.

A realidade hoje em dia é mesmo essa, a de que vivemos numa cápsula, rodeados de nós mesmos, dos nossos problemas, das nossas necessidades. Tendemos a não dar valor, a não prestar atenção e mesmo a desprezar os problemas dos outros por não nos afetarem a nós diretamente. A literacia é também um remédio para o egocentrismo porque nos torna mais humanos e humanizar é colocarmo-nos no lugar dos outros, é vestirmos a sua roupa, calçarmos os seus sapatos, percebermos as suas necessidades, as suas lutas. A literacia permite-nos desenvolver competências sociais, criar empatia, promover a aceitação, conceber diferentes modos de vida. Acima de tudo, a literacia concede-nos sabedoria, para sairmos de nós próprios e olharmos para fora da cápsula.

Se a minha avó fosse viva, domingo desfilaria pelas urnas envergando o seu melhor fato. Quando lá estiverem, a celebrar um direito que vos foi herdado, lembrem-se de olhar ao vosso redor e de ponderar se o vosso voto não só se enquadra nas vossas convicções, mas se também se adequa às necessidades e conveniências dos outros. Tentem sair da vossa bolha, só por um instante. Até porque ao mesmo tempo, a mais de 2000 Km do território português, esperamos que também os alemães tenham o resto do mundo em consideração.

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